sábado, 31 de maio de 2014

Cristo Pedagogo: a Terra é a grande escola em que todos aprendemos​, em que todos nos educamos. A Pedagogia da Esperança oferece a todos a oportunida​de de salvação, porque a salvação está na educação


“Costuma-se dizer, e com razão, que Rousseau produziu uma revolução copérnica na educação. Mas a seiva de toda a Pedagogia de Rousseau foi bebida na Pedagogia de Jesus.”

“A Pedagogia de Jesus e sua didática renascem com Pestalozzi, que as transmite a Kardec.”

“Uma comparação mais rigorosa e pormenorizada provaria de sobejo que é Jesus o pai e o verdadeiro inspirador da Pedagogia Moderna. Houve naturalmente o interregno do medievalismo, quando as interpretações errôneas do Cristianismo e as infiltrações de ideias judaicas e pagãs na escola cristã a deformaram. Mas essa fase já havia sido prevista pelo Mestre e esse fenômeno confirma o seu respeito pelas leis naturais da evolução humana. A parábola do grão de trigo, ensino dialético do processo histórico, é suficiente para demonstrar isso. A parábola do fermento que leveda a farinha é outra confirmação. E dessas duas parábolas, reforçadas pela promessa do Espírito da Verdade, que seria enviado ao mundo para restabelecer os seus ensinos, ressalta que a Pedagogia Espírita é a própria ressurreição, no tempo devido e previsto no Evangelho, da Pedagogia de Jesus. A Educação Espírita é a Educação Cristã que renasce em espírito e verdade.” (José Herculano Pires)

Extraído de página 73 da tese: PEDAGOGIA ESPÍRITA: Um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas – Dora Incontri


Apelando para que cada qual aderisse ao seu programa de educação interior, Cristo pretendia mobilizar a racionalidade, o sentimento e vontade do ser, para que ele ativamente se propusesse a se realizar como ser divino. Nunca seu convite foi no sentido de uma fé contemplativa ou de crença em certos dogmas como parâmetro de salvação. A ideia de salvação, aliás, se retrai diante de um Cristo humano, mas perfeito, que em nome do Ser supremo, indica o caminho da nossa educação. Em vez de um ser mitificado que salva, temos um ser real que educa.

Que pedagogia era essa que praticava Jesus? Herculano Pires refere-se a uma Pedagogia da Esperança: “A educação não era mais o ajustamento do ser aos moldes ditados pelos rabinos do Templo, a imposição de fora para dentro da moral farisaica, mas o despertar das criaturas para Deus através dos estímulos da palavra e do exemplo. A salvação pela graça não era um privilégio de alguns, mas o direito de todos. Jesus ensinava e exemplificava e seus discípulos faziam o mesmo. Chamava as crianças a si para abençoá-las e despertar-lhes, com palavras de amor, os sentimentos mais puros. Nem os apóstolos entenderam aquela atitude estranha: um rabi cheio da sabedoria da Torá a perder tempo com as crianças… (…) Cada criatura humana é para ele um educando, um aluno. (…) Assim, a Terra não é mais o paraíso dos privilegiados e o inferno dos condenados. É a grande escola em que todos aprendemos, em que todos nos educamos. A Pedagogia da Esperança oferece a todos a oportunidade de salvação, porque a salvação está na educação” .

Extraído de página 92 da tese: PEDAGOGIA ESPÍRITA: Um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas – Dora Incontri

3.4 – Cristo pedagogo

Se estamos trabalhando sobre a ideia de uma conexão intrínseca entre vivência existencial e pedagogia do espírito, ninguém melhor do que a figura de Jesus para mostrar o modelo máximo de estatura moral, aliada à confiança no ser humano e a uma prática educativa libertadora. Mas as polêmicas em torno da personalidade do Cristo têm sido tão acirradas em dois mil anos de história cristã, que não se pode deixá-las à parte, antes de aventar qualquer interpretação a seu respeito. Não poderíamos assim ignorar a questão da divindade de Jesus, pois que é justamente a tomada de posição em relação a esse tema que vai nos colocar na via de demonstrar que a sua pedagogia é de fato a pedagogia pleiteada pelo paradigma do espírito.

Nos primeiros três séculos de Cristianismo, andava longe uma unanimidade a respeito da divindade de Jesus. Sabe-se, aliás, que toda ortodoxia, que se constituiu ao longo dos tempos e predominou na história, não foi aceita sem muitas lutas e sangue derramado, e a sua vitória teve estreita ligação política com a ascensão do Cristianismo à religião oficial do Estado. Durante esses primeiros séculos, várias interpretações a respeito da natureza do Cristo lutaram pela preponderância, mas as mais significativas foram justamente a católica — vigente até hoje — e a ariana. A primeira considera o mistério da encarnação divina, e, portanto, a existência de um Deus - uno e trino, como dogma fundamental da crença cristã. A segunda admitia que “o Pai apenas é eterno e merece em sentido próprio o nome de Deus. Tirado do nada, o filho é a primeira, mas a mais excelente das criaturas; ele foi instrumento do Pai para a criação do mundo. Ele se encarnou em Jesus Cristo…” [224]

Ora, a vitória da versão católica deu-se por obra de Atanásio e Constantino. Este último, o imperador cristão, patrocinou o Concílio de Nicéia, no qual foi arbitrariamente declarado o dogma da divindade de Jesus. “A existência de Atanásio se concentra numa luta gigantesca contra o arianismo. Uma grande parte do mundo cristão tomara o partido de Arius…” [225] Atanásio venceu e, aos discordantes da determinação, foi lançado o anátema e depois vieram as perseguições.

Conta Rubenstein, em sua minuciosa obra sobre o assunto: “Atanásio, um futuro santo, era absolutamente sem escrúpulos nas lutas entre as facções e não hesitava em excomungar ou lançar o anátema sobre seus inimigos; em espancá-los para intimidá-los, em sequestrá-los, em jogá-los na prisão e em exilá-los para províncias longínquas”. [226]


224 POUPARD, Paul. Dictionnaire des Religions. Paris, PUF, 1984, p. 94.
225 LAURENT, F. Histoire des droits des gens. Tome 4. Le Christianisme. Gand/Paris, 1855, p. 395.
226 RUBENSTEIN, Richard E. Le jour où Jésus devint Dieu. Paris, Éditions la Découverte, 2001, p. 24.
Essa obra, recentíssima, prefaciada por Michel Vovelle, traz uma pesquisa séria sobre o tema.

Opinando sobre a delicada questão, diz Kardec: “Se o símbolo de Nicéia, que se tornou o fundamento da fé católica, fosse conforme o espírito do Cristo, para que o anátema final? Não é isto prova de que é obra da paixão dos homens? A que se deve a sua adoção? À pressão do Imperador Constantino, que fez dele uma questão mais política do que religiosa. Sem sua ordem não se teria realizado o Concílio e sem a sua intimidação é mais do que provável que o arianismo tivesse triunfado. Dependeu, pois, da autoridade soberana de um homem, que não pertencia à Igreja, que reconheceu mais tarde o erro que cometera e que procurou inutilmente voltar atrás conciliando os partidos, não sermos hoje arianos em vez de católicos, e não ser hoje o arianismo a ortodoxia e o catolicismo a heresia”. [227]

Laurent, contemporâneo de Kardec, que teve leitura semelhante à sua, comenta que: “Há no Cristianismo, considerado como obra do Filho de Deus, um princípio de superioridade que, uma vez reconhecido, conduz necessariamente à dominação”. [228] Ou seja, era muito mais vantajoso politicamente ter uma religião fundada pela majestade suprema do universo, do que por um seu enviado. O nascimento do papado, com seu poderio crescente, encontra aí também base mais sólida. E ainda: “O Cristianismo, fundado sobre a divindade de Jesus Cristo, possuía todo o necessário para conquistar e civilizar os bárbaros”. [229]

Gandhi, cuja autoridade moral pode ser invocada, dentro do critério aqui adotado, e sobre quem o exemplo de Cristo exerceu influência fundamental, tinha apreensão igual: “Rebelo-me contra o Cristianismo ortodoxo, pois estou convencido de que distorceu a mensagem de Jesus. Ele foi um asiático cuja mensagem foi transmitida através de muitos meios de comunicação, e quando recebeu o endosso do imperador romano tornou-se a fé imperialista que continua sendo até os dias de hoje”. [230]

Além das conjunturas políticas, havia ainda, analisando do ponto de vista espírita, um impedimento natural aos homens da época para compreenderem a natureza de Jesus. Tomando como verdadeiras as informações dadas pelos apóstolos a respeito de seus feitos, é muito compreensível que fossem considerados como obras sobre humanas (e até hoje o seriam pela maioria das pessoas). Muito acima da humanidade comum, Jesus passava facilmente por Deus, numa civilização ainda banhada pelas heranças mitológicas, em que deuses desciam à terra, concebiam filhos com mulheres humanas, geravam outros deuses e semideuses.

“Os mitos do Cristo e do Verbo surgem como conotações naturais das mitologias antigas, particularmente a egípcia, a grega e a romana, a judaica e a cristã, para a elaboração lenta e progressiva da Teologia Cristã, que devia produzir, como produziu, o espantoso sincretismo religioso que deu forma ritualística e litúrgica à Igreja Cristã, para que ela pudesse, em nome dos mitos assimilados, domar o potro selvagem do mundo e instalar na Terra o Reino de Deus. O mito da Trindade, provindo das grandes religiões da Antiguidade — como vemos na trindade egípcia formada por Osíris, Isis e Horus — deu-lhe a possibilidade de incluir o Cristo na Mitologia Cristã como a segunda pessoa de Deus, de maneira que a Igreja, fundada pelo Cristo segundo a interpretação católico romana, podia se apresentar como instituição divina do próprio Deus em pessoa”. [231]

227 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Ed. cit., p. 117118.
228 LAURENT, F. Op. cit., p. 401.
229 Idem, ibidem, p. 402.
230 GANDHI, Mohandas Karamchand. Gandhi e o Cristianismo. São Paulo, Paulus, 1996, p. 71.
231 PIRES, J. Herculano. Revisão do Cristianismo. São Paulo, Paideia, 1977, p. 6/7.

Mas, reconheceram muitos espíritos livres, através da história, (só para citar um exemplo, Isaac Newton [232]), lendo atentamente apenas as Escrituras — e foi o que fez Kardec detalhadamente num estudo sobre a natureza de Jesus — que o próprio Cristo jamais se proclamou como Deus. Depois de invocar mais de 80 passagens do Novo Testamento, adverte Kardec: “As palavras de Jesus, quer durante sua vida como depois da morte, acusam uma dualidade de pessoas perfeitamente distintas, assim como um profundo sentimento de inferioridade e subordinação relativamente ao Ser Supremo. Sua insistência em afirmá-lo, espontaneamente, sem ser constrangido ou provocado por quem quer que seja, parece ter por fim protestar antecipadamente contra o papel que ele previa lhe atribuiriam algum dia. Se tivesse guardado silêncio sobre o caráter de sua personalidade, teria dado margem a todas as suposições. Porém a precisão de sua linguagem anula qualquer dúvida”. E na sequência, Kardec arrola algumas dessas citações: “Eu não vim de mim mesmo, mas Aquele que me enviou é o único Deus verdadeiro. — É de sua parte que eu vim. — Digo o que vi em casa de meu Pai. — Não cabe a mim dar-vos, mas para aqueles para quem meu Pai o preparou. — Vou para meu Pai, porque Ele é maior do que eu.…” [233]

A ideia da divindade de Jesus está estreitamente ligada à doutrina do pecado original. Deu-se a “queda” do homem com Adão e Eva, pela desobediência de ambos à proibição divina. Desde então, a descendência humana ficou contaminada por um pecado hereditário. Tal tragédia no início dos tempos humanos desencadeou consequências que até hoje sofremos, embora, segundo a mesma doutrina, cada um de nós ainda nem existisse. Ora, Jesus veio ao mundo como mediador para redimir o homem e oferecer-se em sacrifício diante de Deus (ou seja, diante de si mesmo!), para restaurar a integridade humana. Pela queda de um homem, perdemo-nos todos. Pelo sacrifício de um Deus, redimimo-nos todos. Esta doutrina, reconhecidamente, não é de Jesus, mas de Paulo. “Os principais textos para a doutrina do pecado original estão em São Paulo. (I Coríntios, 15:21 e ss., especialmente Romanos, 5 a 7). O pecado já não é visto como um ato isolado, mas como um estado no qual o homem tem sido mantido cativo desde a queda. Embora o catolicismo ensine que, por mais que seja atingido pelas consequências do pecado original, a natureza do homem não se modifica, a experiência dominante dos cristãos, refletindo tanto a rigorosa tradição agostiniana como o exagerado pessimismo dos reformadores, foi a ênfase na corrupção essencial”. [234]

232 WHITE, Michael. Isaac Newton, o último feiticeiro. Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 10.
233 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Ed. cit., p. 103.
234 FROMM, Erich. O espírito de liberdade. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1988, p. 99.


A irracionalidade deste mito da queda começou a perturbar as inteligências que saíram da ideologia medieval e a revisão crítica do Cristianismo veio sendo feita a partir do Renascimento e de forma mais sistemática desde o Iluminismo. Mas a consequência progressiva dessa crítica foi a humanização cada vez mais contundente de Jesus, chegando-se a desfigurar sua personalidade, arrancando-lhe os atributos de superioridade moral — como fez Ernest Renan no século XIX ou Nikos Kazantzakis no século XX. E a justa rejeição à doutrina de pecado e dependência do homem ante uma divindade que “salva”, diante de quem deve anular-se, renegar a razão, para receber a “graça” — resultou afinal na própria morte desse Deus e na rebelião fanática do ser humano, que, não bastando fazer perecer um dado conceito de Deus e uma dada versão de pecado, quis desfazer-se de qualquer tutela e de qualquer valor.

O Espiritismo propõe uma solução a toda essa problemática, que pretende salvar o Cristianismo da morte de Deus e da dissolução de todos os valores. Essa solução foi diversas vezes esboçada por cristãos de todas as épocas, mas faltava um elemento crucial na visão de mundo dos intérpretes do Cristo nos últimos 2.000 anos. O evolucionismo individuado de que já traçamos os pontos fundamentais, nos coloca no seu roteiro e, ao mesmo tempo, no projeto pedagógico que aqui nos propomos estudar.

Não sendo o Ser Supremo do Universo (aliás, desde a época da formulação do dogma da Trindade, esse universo se expandiu infinitamente e se aceitamos a existência de Deus, e a sua presença, governo e poder entre bilhões e bilhões de galáxias e em meio a prováveis inúmeras humanidades, fica mais difícil aceitar a ideia de uma encarnação sua na Terra), Jesus Cristo não se vulgariza com isso, tornando-se apenas mais um homem entre outros tantos. Ele seria o Espírito que já atingiu a perfeição como todos nós atingiremos um dia, segundo a lei da evolução.

Portanto ele é a realização daquilo de que somos ainda potência. É a meta a ser atingida, por um processo de educação do espírito, nas sucessivas existências. Assim põe Léon Denis, com sua linguagem poética: “Jesus é um desses divinos missionários e é de todos o maior. Destituído da falsa auréola da divindade, mais imponente nos parece ele. Seus sofrimentos, seus desfalecimentos, sua resignação, deixam-nos quase insensíveis, se oriundos de um Deus, mas tocam-nos, comovem-nos profundamente em um irmão. (…) Nele vemos o homem que ascendeu à eminência final da evolução, e neste sentido é que se pode chamar deus, assim conciliando os apologistas da sua divindade com os que a negam. A humanidade e a divindade do Cristo representam os extremos de sua individualidade, como o são para todo o ser humano. “Ao termo de nossa evolução, cada qual se tornará um ‘Cristo’, será um com o Pai e terá alcançado a condição divina”. [235]

Gandhi vê da mesma maneira: “Eu acredito na possibilidade de aperfeiçoamento da natureza humana. Jesus chegou tão perto da perfeição quanto possível”. [236]

235 DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de Janeiro, FEB, 1971, p.79. Interpretação semelhante
faz o filósofo Henri Bersgon, em sua obra As duas fontes da moral e da religião . Bergson foi ele mesmo
estudioso dos fenômenos espíritas e recebeu influência dessa corrente. Entretanto, a sua concepção difere
da espírita na medida que há uma clara tendência ao panteísmo em Bergson, que inexiste em Kardec. Para
melhor análise dessa questão, ver o artigo: INCONTRI, Dora. Henri Bergson: a concepção intuitiva do
ser. (in: Suplemento de Cultura do Jornal O Estado de São Paulo. 4/1/1991)
236 GANDHI, Mohandas Karamchand. Op. cit., p. 72.


Não inserimos essa discussão aqui no sentido de combater uma dada interpretação do Cristianismo, mas não poderíamos por às claras a proposta espírita, sem cotejá-la com o Cristianismo tradicional. Trata-se de mostrar que essa proposta se assume como inteiramente cristã, mas dentro de um Cristianismo que foi rejeitado como herético no decorrer dos tempos, por não ser aquele adotado pela ortodoxia dominante, que deteve imenso poder político para fazê-la valer com imposições violentas.

Por outro lado, a divindade de Jesus, de certa forma, abala uma de suas mensagens centrais, que constitui o cerne da pedagogia aqui tratada. É que Cristo, visto como o próprio Deus, fica acima de nossa capacidade de imitação, quando justamente a sua vontade era despertar um movimento de ascensão espiritual no ser humano, para que possamos atingir seu estado de perfeição. “Quem crê em mim fará as obras que eu faço e fará até maiores do que elas” (João, 14:12). Em numerosas passagens do Evangelho, ele demonstra uma confiança irrestrita na capacidade do ser humano de erguer-se às alturas da moralidade e da sabedoria. “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Transporta-se daqui para lá e ele se transportará, e nada vos será impossível” (Mateus, 17:20), “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mateus, 5:48). Semelhante interpretação era também a dos partidários de Arius: “Do ponto de vista dos arianos, era essencial que Jesus não fosse Deus, pois Deus, sendo perfeito por natureza, era inimitável. Em compensação, a virtude transcendente de Cristo, que era fruto de atos repetidos de sua vontade, era ao menos potencialmente acessível ao resto dos mortais”. [237]

Revelando um otimismo intrínseco em sua pregação e em sua ação, Jesus consegue enxergar o fio de conexão com o outro ser humano, para chamá-lo à realização da vida moral. Desencadeia processos de regeneração, sem qualquer imposição externa. Conquista Madalena para fora da vida de desregramento, desperta em Zaqueu a consciência de ser menos avarento, e, mesmo depois da morte, aproveita o ímpeto destrutivo de Saulo de Tarso, canalizando-o para a divulgação apostólica do Cristianismo.

Realiza, pois, de forma mais eficaz e elevada, a ideia de Sócrates, de restituir o homem a si mesmo, pela prática de um diálogo informal, que transcorre à beira dos lagos, no alto dos montes ou no meio das praças. E o faz estabelecendo um vínculo amoroso com os discípulos, ao mesmo tempo em que apela para a sua autonomia racional: “Jesus se impunha pela superioridade moral e intelectual, pela sua presença irradiante de amor e simpatia para com todos, pelo seu espírito compreensivo, pela sua personalidade espiritual transbordante de bondade. Mas também pela sua firmeza e energia, pela coragem de enfrentar todas as situações, por mais difíceis que fossem, pela sua franqueza na repulsa ao mal e a sua posição definida em todas as questões”. [238] Por outro lado: “O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder misterioso do raciocínio, que as fazia senhoras de si mesmas, responsáveis por seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria tradição, Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro, e não apenas por fora; servir-se do sábado, em vez de escravizar-se a ele; orar conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dará pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe pede peixe”. [239]

237 RUBENSTEIN, Richard E. Op. cit., p. 26. Kardec, por sua vez explica: “Desde que Deus possui a
perfeição infinita em todas as coisas, esta máxima: ‘Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito’,
tomada ao pé da letra, faria supor a possibilidade de atingirmos a perfeição absoluta. Se fosse dado à
criatura ser tão perfeita quanto o seu próprio Criador, ela o igualaria, o que é inadmissível. (…) Devemos,
pois, entender, por essas palavras, a perfeição relativa de que a humanidade é suscetível, e que mais pode
aproximá-la da Divindade.” KARDEC, Allan. L'Evangile selon le Spiritisme. Ed. cit. Cap. XVII, item 2, p. 247.
238 PIRES, J. Herculano. Revisão do Cristianismo. Ed. cit., p.49.

Apelando para que cada qual aderisse ao seu programa de educação interior, Cristo pretendia mobilizar a racionalidade, o sentimento e vontade do ser, para que ele ativamente se propusesse a se realizar como ser divino. Nunca seu convite foi no sentido de uma fé contemplativa ou de crença em certos dogmas como parâmetro de salvação. A ideia de salvação, aliás, se retrai diante de um Cristo humano, mas perfeito, que em nome do Ser supremo, indica o caminho da nossa educação. Em vez de um ser mitificado que salva, temos um ser real que educa.

Que pedagogia era essa que praticava Jesus? Herculano Pires refere-se a uma Pedagogia da Esperança: “A educação não era mais o ajustamento do ser aos moldes ditados pelos rabinos do Templo, a imposição de fora para dentro da moral farisaica, mas o despertar das criaturas para Deus através dos estímulos da palavra e do exemplo. A salvação pela graça não era um privilégio de alguns, mas o direito de todos. Jesus ensinava e exemplificava e seus discípulos faziam o mesmo. Chamava as crianças a si para abençoá-las e despertar-lhes, com palavras de amor, os sentimentos mais puros. Nem os apóstolos entenderam aquela atitude estranha: um rabi cheio da sabedoria da Torá a perder tempo com as crianças… (…) Cada criatura humana é para ele um educando, um aluno. (…) Assim, a Terra não é mais o paraíso dos privilegiados e o inferno dos condenados. É a grande escola em que todos aprendemos, em que todos nos educamos. A Pedagogia da Esperança oferece a todos a oportunidade de salvação, porque a salvação está na educação” . [240]

A visão da vida na Terra como processo educativo faz sentido à luz da reencarnação, em que as almas estão em permanente aprendizagem. Por isso mesmo o cristão, que admite essa ideia, vê em Jesus muito mais o pedagogo da humanidade que o salvador.

Orígenes, cuja interpretação do Cristianismo é a mais próxima do Espiritismo, refere-se a “esta educação (ou instrução) pela qual o gênero humano é educado e instruído por meio da carne, com a ajuda dos poderes celestes…” [241] Para Orígenes, assim como para Kardec, “Deus, pela arte inefável de sua sabedoria, transforma e restaura absolutamente tudo o que acontece, em vista do proveito e do progresso comum universal: mesmo essas criaturas que se afastaram por si mesmas, (…) ele as chama num acordo único de ação e trabalho; assim, apesar da diversidade dos movimentos das almas, elas constituem a plenitude e a perfeição de um mundo único. Única é, com efeito, a força que as conserva unidas e mantém toda a diversidade do mundo: ela conduz os movimentos diversos ao cumprimento de uma obra única… Eis porque, me parece, que Deus, pai do universo, tudo organizou, segundo o reino inefável de seu Verbo e Sabedoria, em vista da salvação de todas as suas criaturas…” [242] Não há portanto corrupção absoluta, nem condenação eterna. A natureza humana não corrompida, o livre arbítrio como apanágio de cada alma individual e uma propensão natural ao aperfeiçoamento e à ascensão empresta à educação cristã, proposta por Jesus, um ar refrescante de liberdade e naturalidade.


239 PIRES, J. Herculano. O Espírito e o tempo. Ed. cit., p. 81.
240 PIRES, J. Herculano. Pedagogia espírita. São Paulo, Edicel, 1985, p. 6667.
241 ORIGÈNE. Traité des principes. Paris, Études Augustiniennes, 1976, p. 69.
242 Idem, ibidem, p.81.


Jesus não se impõe, não usa de coerção, nem mesmo de persuasão. Convida, exemplifica, serve e ama. “Jesus criou a Didática Naturalista, que se funda nas leis naturais e delas se serve para o ensino espontâneo. Todas as suas lições eram dadas em termos comparativos, sem artifícios, com simplicidade e naturalidade”. [243] A sua atitude amorosa não exclui a energia e a virilidade, quando se trata de educar os fariseus, segundo ele, “hipócritas e sepulcros caiados” (Mateus, 23:27).

Mas o importante a considerar na atitude de Jesus, que revoluciona o caráter do mestre, é que ele abdica de todo outro poder sobre os educandos, que não seja o poder da autoridade moral, da influência afetiva e do exemplo contagiante. Para ensinar, abençoa, cura, serve a quem necessita, usa o verbo paciente e adequado ao ouvinte, lava os pés dos discípulos e afinal, sacrifica-se na cruz. “Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve” (Lucas, 22:27) — aí se resume seu método pedagógico. Quem mais serve, por amor, é quem mais é capaz de fazer brotar o impulso do bem na alma humana. Quem mais se sacrifica, por amor, é quem mais alcança a intimidade do outro, para fazê-lo melhor.

Mas, afirmando que “o amor torna-se agora a chave mestra de toda a educação cristã”, ressalta depois Cambi que “ao lado dos Evangelhos, como documento quase cofundador do Cristianismo, colocam-se as Epístolas de São Paulo. Aqui aparece outra visão da mensagem cristã: mais dramática, mais inquieta, mais disciplinar, passada pelo filtro da cultura hebraica e da cultura helenística romana (Paulo era um hebreu romanizado). Nas epístolas (…) emergem também aspectos de valor pedagógico, sobretudo dois: o dualismo alma/corpo e a condenação da corporalidade, vista como pecado, como algo que se contrapõe e perturba a vida do espírito, que implica uma pedagogia da repressão dos instintos e da sublimação interior, operada através de uma luta contra si mesmo. (…) Vem depois — em continuidade com os Evangelhos — a exaltação do Cristo como modelo do homem regenerado pela Boa Nova…” [244]

As duas vertentes do Cristianismo têm coexistido no decorrer da história — de um lado, a visão do homem, herdeiro do Criador, como capaz de projetar-se para a transcendência, de fazer-se santo, perfeito, e, nesta linha, propostas libertárias, igualitárias de educação. Do outro, a visão do pecado, da tragédia da queda, da corrupção inata, da necessidade de disciplinar e reprimir… Evidentemente, em muitas doutrinas e práticas, ambas as visões se conjugam, em nuanças intrincadas. A tese aqui levantada, entretanto, é a de que Jesus, propondo um modelo de educação humana, é o fundador da primeira tendência, que combina perfeitamente com a de Sócrates. Aliás, poderíamos fazer aqui a mesma análise em relação a Paulo, que fizemos acima em relação a Platão. Embora tenha sido o apóstolo dos gentios o responsável principal pela divulgação do Cristianismo — pois foi quem compreendeu primeiro e teve a coragem de universalizar a mensagem cristã, arrancando-a do panorama restrito do mundo judeu (“reduzida a seus elementos judaizantes, a fé cristã não tinha chance de viver…”) [245] — embora fosse o mais culto entre os continuadores do Cristo, e por isso, mais habilitado a emprestar a primeira feição filosófica aos seus ensinos, Paulo tinha caráter nitidamente autoritário. Sua perseguição aos cristãos, antes da visão às portas de Damasco, demonstra esse aspecto de sua personalidade. Sua índole ativa, enérgica, dominadora — justamente responsável pela fundação de numerosas igrejas e pela ação positiva que imprimiu os rumos do Cristianismo primitivo — é vista por muitos estudiosos como perpassada por aspectos de irracionalidade e autoritarismo:


243 PIRES, J. Herculano. Op. cit., p 72.
244 CAMBI, Franco. Op. cit., p. 124.
245 GUIGNEBERT, Charles. Le Christ. Paris, Albin Michel, 1969, p. 127.


“Após sua visão decisiva, o Tarsiota não mudou nem em temperamento, nem em espírito, mas somente de fanatismo e direção”. [246] Não concordamos com o radicalismo desta afirmativa, pois parece clara uma transformação real de sua personalidade, ao influxo da mensagem de Jesus, mas de fato não se esvai completamente o homem velho, coisa que o próprio Paulo admite: “Não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero” (Romanos, 7:19). Esta permanência dos traços negativos do ex-fariseu se coadunam com as teorias pessimistas de queda e o caráter de disciplina repressiva, que ele deixou imanente em suas epístolas, ao lado das belíssimas intuições a respeito da lição cristã. Quando o apóstolo afirma que somos “herdeiros de Deus e coherdeiros do Cristo” (Romanos, 8:17), quando diz que “o Senhor é Espírito, e, onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (II Coríntios, 3:17) deixa perpassar o sopro renovador e livre da doutrina do Cristo. Mas quando se refere à corrupção, “sou carnal, vendido como escravo ao pecado”, ou quando manifesta atitudes discriminatórias, “estejam caladas as mulheres nas assembleias (…) Devem ficar submissas, como diz também a Lei” (I Coríntios, 14:34), está mesclando suas próprias idiossincrasias e suas heranças culturais à mensagem cristã. Universaliza, em nome do Cristianismo, o que é sentimento e conflito pessoal e transfere para o Evangelho o que herdou da antiga Lei Mosaica, apesar de fazer inteligente leitura dos avanços que Jesus propõe em relação ao Velho Testamento.

Entretanto, Paulo mesmo entendeu que a essência da ideia do Cristo está no amor ao próximo. No seu mais belo trecho sobre a caridade, compreende que “ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tiver a caridade, eu nada seria”. (I Coríntios, 13:2) E a disposição de quem se impregna da caridade cristã não é de dominação e força física, mas de serviço e força moral: “A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (I Coríntios, 13: 47) Fazendo eco a esse hino de Paulo, o Espiritismo elege como princípio ético máximo “fora da caridade não há salvação”, também como remédio ao sectarismo dogmático que dominou as facções religiosas em todos os séculos: “Enquanto a máxima fora da caridade não há salvação apoia-se num princípio universal, abrindo a todos os filhos de Deus o acesso à felicidade suprema, o dogma fora da Igreja não há salvação apoia-se, não na fé fundamental em Deus e na imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, mas na fé especial em dogmas particulares. É, portanto, exclusivista e absoluta. Em vez de unir os filhos de Deus, divide-os.

246 Idem, ibidem, p. 252.

Em vez de incitá-los ao amor fraterno, mantém e acaba por legitimar a animosidade entre os sectários dos diversos cultos (…) A máxima fora da caridade não há salvação é a consequência do princípio de igualdade perante Deus e da liberdade de consciência”. [247]

Assim, recuperado como mensagem de fraternidade, liberto do dogmatismo sectário, encarando-se Jesus como um pedagogo divino, que veio propor um programa de educação do espírito, em parâmetros de liberdade e amor, o Cristianismo é revisto pelo paradigma do espírito. O Espiritismo assim se anuncia como mais um ensaio histórico de retorno à essência cristã, ofuscada pelas instituições humanas, de poder e de dominação. E na raiz desta revisão, renasce a pedagogia de Jesus, como pedagogia da esperança: quem já realizou em si a divindade intrínseca de todas as criaturas, trabalha para despertá-la em seus irmãos de humanidade, confiando em sua capacidade de aperfeiçoamento autônomo. E daqueles que já pisaram no mundo, certamente Jesus foi quem a realizou de maneira mais completa e por isso sua mensagem e seu exemplo exercem poderoso influxo de mudança e ascensão.

247 KARDEC, Allan. L'Evangile selon le Spiritisme . Ed. cit., Cap. XV, item 8, p.165.


Extraído das página 87 à 95 da tese: PEDAGOGIA ESPÍRITA: Um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas – Dora Incontri

O texto de onde os trechos foram extraídos está disponível, em formato PDF, em:
 
www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L58.pdf


Versão revisada em livro:



A Pedagogia Espírita tem algo da vastidão de mares que se abrem ao infinito. Tem sabor de cores brasileiras, pois por aqui ela nasceu, embalada por ventos antigos. Tem a feminilidade da lua e a bravura libertária dos que descobrem novos mundos. É o espírito em voo de busca e ascensão.
Esta foi a tese de doutorado de Dora Incontri na USP, que discute as bases filosóficas e históricas da Pedagogia Espírita, desde a maiêutica de Sócrates, passando por Comenius, Rousseau e Pestalozzi, chegando à formulação prática e teórica da Pedagogia Espírita no Brasil, com Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco, Herculano Pires e outros.
Na conclusão, há o Manifesto da Pedagogia Espírita, com todos os seus princípios e aplicações.
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita - um projeto brasileiro e suas raízes. São Paulo: Editora Comenius, 2012.
Esta leitura é mais um dos caminhos descobertos em:



 
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segunda-feira, 21 de abril de 2014

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