“A
História, que é essencialmente História do Espírito, transcorre
‘no tempo’. Assim, pois, ‘o desenvolvimento do espírito cai no
tempo’. Hegel, porém, não se contenta em afirmar a
‘intratemporacialidade’ do espírito como um factum,
mas trata de compreender a possibilidade de que o espírito caia no
tempo, que é o ‘sensível não sensível’. O tempo há de poder
acolher o espírito, por assim dizer. E o espírito há de ser, por
sua vez, afim com o tempo e com a sua essência.”
HEIDEGGER,
crítica de Hegel, em O
SER E O TEMPO.
CAPÍTULO
V
HORIZONTE
ESPIRITUAL: MEDIUNIDADE
POSITIVA
1
– Transcendência humana
A
individualização espiritual representa o momento de transcendência
humana, ou seja, aquele em que o homem supera as condições da
própria humanidade. Até esse momento, ser humano é estar ligado a
condições animais, diferenciando-se das outras espécies apenas
pela razão. Há deuses e homens. Os deuses são entidades
espirituais, superiores, que vivem nos intermúndios, gozando do
privilégio da imortalidade. Os homens são criaturas efêmeras,
escravizadas ao solo, “bichos da terra, tão pequenos”, segundo a
expressão de Camões. Mas, quando a evolução mediúnica abre as
perspectivas do horizonte espiritual, o homem descobre que ele e os
deuses são semelhantes, e por isso mesmo se eleva sobre a condição
humana, atingindo a divina.
Na
antiguidade e na Idade Média, o dualismo humano divino se mostra bem
claro. Um fenômeno mediúnico de possessão é sempre tomado como
manifestação demoníaca ou sagrada. O homem, não tendo ainda
atingido o horizonte espiritual, não pode conceber que o espírito
comunicante seja da sua mesma natureza. Para ele, trata-se de uma
entidade estranha, boa ou má. Entretanto, no horizonte profético de
Israel, já aberto às perspectivas espirituais, aparecem as
declarações insistentes de que os espíritos comunicantes são de
natureza humana, como vemos nos casos espíritas da Bíblia, Velho e
Novo Testamentos. Somente na era moderna, porém, essa compreensão
irá se tornar efetiva. Porque só então o espírito humano
amadureceu o suficiente, para que a promessa do Consolador, do
Paráclito, do Espírito da Verdade, possa cumprir-se.
É
por isso que o espírito de Charles Rosma, ao comunicar-se em
Hydesville, através da mediunidade das irmãs Fox, numa família
metodista, não é mais tomado como demônio ou deus, mas como o
espírito de um homem. Assim aceito, Rosma pode falar do seu estado,
do seu passado, e dar as indicações de sua passagem ocasional pela
residência em que foi morto, bem como das condições dessa morte e
dos indícios existentes no subsolo, que serão encontrados mais
tarde. Rosma pode ser tomado como um exemplo do fenômeno da
transcendência humana, que assinala o aparecimento concomitante da
mediunidade positiva. Não encontramos mais, em Hydesville, o profeta
bíblico, nem o oráculo ou o pajé, mas o médium, ou seja, o
indivíduo humano que se tornou capaz de servir de intermediário
entre seres espirituais e carnais, ambos da mesma natureza. Rosma, o
mascate, morto na casinha de Hydesville, transcende sua condição
material humana, mas continua humano no plano espiritual. De mascate,
passa a espírito e como espírito se comunica, graças à
mediunidade das meninas da família Fox. Já não estamos mais no
plano místico e misterioso do mediunismo, mas no plano científico,
racional, da mediunidade positiva.
52
– J.
Her culano Pires
Vemos
assim que o aparecimento do horizonte espiritual é uma decorrência
natural da evolução mediúnica. Mas vemos também, como assinala
Kardec em A
GÊNESE,
que essa evolução se realiza num contexto histórico, juntamente
com a evolução mental, moral e espiritual do homem, no processo de
desenvolvimento econômico social da humanidade. Sem o
desenvolvimento científico, assinala Kardec, não se criaria no
mundo o clima necessário à compreensão do Espiritismo:
Quando
tratamos, pois, de mediunidade positiva, não fazemos abstração das
condições históricas que propiciaram o seu aparecimento. Temos de
encarar o problema no seu contexto, para bem compreendê-lo.
A
transcendência humana que caracteriza o horizonte espiritual não
significa, por isso mesmo, uma fuga ou uma deserção das condições
humanas. Pelo contrário, significa o aparecimento dessas condições,
permitindo a superação da animalidade e a transferência do homem
para o plano antigamente reservado às divindades, fossem elas
benéficas ou maléficas.
Por
outro lado, essa superação não representa um passe de mágica, um
fato sobrenatural, uma descontinuidade no processo histórico, mas o
seu prosseguimento natural. Tornar-se divino é o próprio destino do
homem. O divino, como já dissemos, é aquilo que está acima do
humano, assim como o humano é o que está acima do animal. Deste ao
homem há a distância de uma superação, mas essa distância não é
vazia. Do homem ao divino há também uma distância, que se prolonga
através de fases evolutivas bem definidas.
Podemos
falar, lembrando Einstein, de um continuum
do
processo evolutivo, englobando matéria e espírito. Porque nesse
processo não há solução de continuidade. Já vimos as fases
evolutivas inferiores, em que o homem sobe, pouco a pouco, do plano
biológico para o social e deste para o profético e o espiritual.
Mas nos dois últimos, o profético e o espiritual, já se iniciam as
fases evolutivas superiores.
Veremos
como essas fases se definem no plano mental, ao analisarmos a série
de concepções que constituem, no seu conjunto, o processo de
transcendência ao horizonte espiritual. É pelo pensamento que o
homem se eleva, supera as condições da vida humana no plano físico,
atingindo as possibilidades de sublimação humana no plano
espiritual. Ortega y Gasset definia o homem como um drama. Nada nos
oferece melhor visão desse drama, em sua extensão e em sua
profundidade, do que o estudo da evolução humana à luz dos
princípios espíritas.
Página
51 - O
ESPÍRITO E O TEMPO - Herculano Pires
INDICE
Preliminares
– pag.
8
1ª
Parte – Fase pré-histórica – pag.
11
I
– Horizonte tribal e mediunismo primitivo
II
– Horizonte agrícola: animismo e culto dos ancestrais
III
– Horizonte civilizado: mediunismo oracular
IV
– Horizonte profético: mediunismo bíblico
V
– Horizonte espiritual: mediunidade positiva
2ª
Parte – Fase histórica – pag.
59
I
– Emancipação espiritual do homem
II
– Ruptura dos arcabouços religiosos
III
– A invasão espiritual organizada
IV
– Antecipações doutrinárias
V
– A falange do consolador
3ª
Parte – Doutrina Espírita – pag.
107
I
– O triângulo de Emmanuel
II
– A ciência admirável
III
– A filosofia do Espírito
IV
– Religião em espírito e verdade
V
– Mundo de regeneração
4ª
Parte – A prática mediúnica – pag.
157
I
– Pesquisa científica da mediunidade
II
– As leis da mediunidade
III
– Antropologia espírita
Bibliografia
– pag.
194
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