V - O CULTO CRISTÃO
Páginas 22 a 24 de Revisão do
cristianismo
Há uma diferença fundamental
entre o culto das antigas religiões agrárias e pastoris e o culto cristão. Todo
o ritual do culto daquelas religiões nasceu dos ritmos da Natureza, enquanto os
rituais do culto cristão tiveram de ser derivado daqueles e não raro inventado.
Disso resulta um problema de legitimidade que tem provocado incessantes
disputas e violentas condenações. A revolta luterana, que desencadeou a
Reforma, foi um dos momentos mais críticos dessa busca da legitimidade e
provocou o movimento da Contra-Reforma. Lutero preconizou a volta a Cristo, com
a extinção de todos os acessórios adotados pela Igreja através de mais de um
milênio de invenções bastardas. Porque o Cristianismo havia sido precisamente
uma reforma do Judaísmo, visando à depuração do culto judaico, que atingira, na
fase dominante do Farisaísmo, a mais espantosa saturação de normas e formas
para a relação do homem com Deus.
Jesus, nascido judeu, formado na educação
judaica das sinagogas, condicionado pela tradição bíblica, mostrou-se desde o
início do seu ministério espiritual um revolucionário e um crí-tico rigoroso
das exterioridades rituais e comerciáveis do Templo de Jerusalém. Não se
submeteu a nenhuma ordenação oficial, preferindo agir como um rabino popular
independente, violando as leis do rabinato e condenando-as francamente. Não
instituiu fórmulas novas e nem fundou qualquer igreja. Assim, os cristãos
formalistas, apegados ao passado, viram-se em dificuldades para restabelecer um
culto cristão, tendo de apelar para a adaptação de certas expressões
evangélicas aos seus objetivos. Centralizou-se o culto na pessoa de Jesus
Cristo como único salvador da humanidade, único
intercessor do homem junto a Deus, fundamentando-se a fé na expressão alegórica
do Batista, que chamou Jesus de Cordeiro de Deus.
O
culto cristão ligou-se assim aos cultos agrários e pastoris, revelando suas
raízes na alegoria do Cordeiro. Mas esta alegoria não se refere aos cultos
ancestrais, e sim aos sacrifícios de animais no Templo de Jerusalém. Jesus
seria o cordeiro ritual que o próprio enviara à Terra para ser sacrificado em
seu louvor, a fim de que o sangue do sacrifício lavasse os pecados da
humanidade. Há tanta incongruência nesse mito que fundamenta o culto cristão,
quanto nos demais que se desenvolvem posteriormente. Até mesmo dos ritos
fálicos dos tempos mais remotos foi tirado o modelo do hissope para a aspersão
da água benta, uma prática mágica de fecundação da terra para a semeadura,
segundo o processo da fecundação animal e humana.
Jesus
combateu a magia e os mitos, mas o Cristianismo se organizou na sistemática
mitológica e acabou transformando o próprio Mestre em mito. O rito do batismo
era uma prática muito difundida na Palestina, segundo mostra Guignebert, e
provinha das religiões ancestrais dos cananeus. João Batista nada mais fazia do
que usar essa prática para ajudar as criaturas a se modificarem, certas de que
a água do Jordão não lhes lavara apenas o corpo, mas também a alma. Por isso os
batizados com água eram aplicados a pessoas adultas, que deviam compreender a
necessidade de iniciar uma vida nova para agradar a Deus. Esse ato folclórico,
simples e puro, foi transformado no culto cristão num processo mágico de
purificação espiritual, destinado a lavar a mancha do pecado original de Adão e
Eva da almazinha inocente das crianças recém-nascidas. Mas que pecado era esse?
O da desobediência, que a serpente transmitira a Eva e esta a Adão. No entanto,
a desobediência da criança, como a dos animais, não pode apagar-se com
palavras, água e sal, porque é uma consequência natural do desenvolvimento dos
instintos vitais que levam os animais e o homem à busca de satisfação de suas
necessidades orgânicas.
Talvez
por isso inventou-se também o rito da crisma como confirmação do batismo, que
por si só se mostrava impotente contra o pecado original. O padre batiza, o
bispo, seu superior hierárquico, dá o sacramento da crisma. E apesar de todo o
aparato do culto exterior e de toda a sofística da justificação teológica, a
criança não cede nada em sua desobediência salutar e necessária. Não só as
formas sacramentais se revelam vazias, mas também os supostos poderes da
hierarquia sacerdotal. Além disso, as igrejas se esqueceram das
palavras seguintes do Batista, que restringem o batismo da água ao seu
ministério individual, anunciando que o Cristo batizaria no fogo e no espírito.
E também se esqueceram do episódio do Apóstolo Pedro no porto de Jope, quando afirmou,
na casa do centurião romano Cornélios, que o batismo do espírito não dependia
de nenhum rito sacerdotal.
A
Missa, como assinala Blavatsky, é a antiga ceia das ordens ocultas dos
Mistérios mitológicos, das cerimônias maçônicas, transformadas numa encenação
mágica do Cristianismo. As procissões sagradas do Corpo de Deus derivam de
adaptações egípcias do Culto de Osíris, esquartejado e depois ressuscitado. As
procissões comuns dos santos em andores floridos imitaram as procissões romanas
dos deuses-lares, dos manes, antepassados das grandes famílias romanas
cultuados pelos descendentes.
A
extrema-unção é a revivescência das unções piedosas dos cadáveres com óleos
rituais, que no Egito chegou ao extremo da mumificação, num apego desesperado e
anticristão ao corpo carnal. O latim, língua do Império dos Césares, mantinha o
prestígio dos ritos e do sacerdócio, pois a linguagem misteriosa, que ninguém
mais compreendia, resguardava o poder secreto de um mundo morto, mas fabuloso.
O pensamento mágico, natural nas populações bárbaras que derrubaram o Império
das Messalinas. E o pensamento racional do Cristo, que tudo explicava e esclarecia,
era deformado pelas interpretações teológicas que alimentadas pela fascinação
do desconhecido e particularmente do sobrenatural: As vestes sacerdotais,
pesadas e solenes, herdadas de cultos orientais que invadiram a Europa, e a
coroa recortada no couro cabeludo dos padres, representando o disco solar das
religiões pagãs, guardava o poder das clareiras abertas no mistério das
florestas profundas e escuras.
A
imaginação mítica da população bárbara embriagava-se com esses ingênuos
artifícios que, na verdade, constituíam a mais atrevida e completa deformação
da mensagem cristã. Hoje, quem assiste a uma missa na linguagem atual de
qualquer nação moderna sente logo a sensação de uma representação teatral
ingênua, desprovida de toda a grandeza imaginária do passado. Um teatrólogo
moderno poderia elaborar um texto melhor para a recitação ingênua dos párocos,
que não obstante se julgam dotados do poder de evocar a Deus em carne e sangue,
na pessoa do Cristo, e fazê-lo encarnar na hóstia, sem que Ele (Deus) possa
recusar-se a isso.
Não
queremos ridicularizar a crença simples do povo, que ainda hoje carrega as suas
pesadas cargas de superstição e magia, mas apenas mostrar, com estes dados
recolhidos da pesquisa histórica mundial, em plano universitário, que o chamado
Cristianismo oficial necessita de uma revisão imediata para poder entrosar-se
na cultura contemporânea. Todo esse gigantesco fabulário que fez de Jesus de
Nazaré um mito absurdo, alimentando ainda hoje as mais sangrentas lutas
religiosas no mundo, tem de ser desmontado para que o Cristo reapareça na sua
realidade humana e racional, retomando o seu lugar entre os homens.
A
mensagem cristã, na sua pureza primitiva, tem um poder muito maior que o de
todo esse amontoado de coisas heterogêneas e encenações antiquadas. Sua
finalidade não é fascinar os homens e dominá-los pela paixão do mistério, mas
esclarecê-los e transformá-los pela visão real do mundo e da vida. No momento
em que a Ciência penetra na intimidade da matéria, revelando os segredos da sua
estrutura, e rompe os limites do pequenino e pobre planeta que habitamos, para
mostrar-nos a grandeza do Cosmos e a possibilidade humana de devassá-lo e
conquistá-lo, o apego das populações civilizadas a esse amontoado de
superstições e crendices só pode favorecer, como está favorecendo, o
desenvolvimento da descrença e do materialismo em todo o mundo.
O
tabu do sagrado, elaborado e entretecido em filigranas mentais, gerando uma
terminologia fantasiosa, em que as palavras perdem o sentido da comunicação
para se tornarem perigosas formas de vetores psicoemocionais, sufocando a razão
e impedindo o entendimento, não pode subsistir sem graves ameaças numa hora de
acelerado desenvolvimento cultural. Nossa submissão a essa herança mágica
equivale a um suicídio coletivo, que já nos ameaça com os fantásticos arsenais
de armas atômicas.
Não
se trata de ameaça divina, mas humana. De castigo do Céu, mas de traição
terrena. De respeito ao passado, mas de acomodação egoísta no presente. Porque
o passado real foi desfigurado e aviltado nas aras da ignorância e dos
interesses imediatistas. O passado real está na Verdade Cristã.
O
culto exterior do Cristianismo Oficial contrasta flagrantemente com o culto
interior do Cristo e do Cristianismo apostólico. Jesus condenou os fariseus que
se vestiam de roupagem pomposa e se punham a orar nas esquinas de Jerusalém
para serem vistos e admirados. Desrespeitou as regras de pureza que ordenavam
lavar as mãos para sentar-se à mesa, sem prescrever a pureza do coração.
Permitiu que os discípulos famintos apanhassem espigas de trigo no campo, em
pleno sábado, para se alimentarem. Fez curas no sábado e lembrou que o mais
zeloso judeu não deixaria de salvar sua ovelha caída num buraco no dia de
sábado. E por fim perguntou se o sábado havia sido feito para o homem ou o
homem para o sábado.
Sua
posição contra os mitos, os dogmas, os ritos, as prescrições formais e todo o
formalismo está bem definido nos textos evangélicos, ressaltando como água pura
entre os elementos impuros da influência mitológica sobre os redatores tardios
dos textos. Na parábola do trigo e do joio revelou sua plena consciência de que
o seu ensino seria deturpado e precisaria mais tarde ser restabelecido em
espírito e verdade.
Mas
o comodismo, o egoísmo, o interesse inferior pelas coisas terrenas, a preguiça
mental, a covardia — todas essas anti-virtudes da espécie consolidaram no tempo
as posições vantajosas do anti-Cristo, dando a este o domínio do mundo. Ainda
recentemente o Papa atual, na investidura sagrada da sua santidade oficial e da
sua infalibilidade abismal, declarou: "Quem não acredita no Diabo não é
cristão". O que se sabia até agora é que não é cristão quem não acredita
no Cristo. Essa espécie de qualificação da fé às avessas exemplifica bem a
inversão da mentalidade cristã através da sedimentação do formalismo em quase
dois mil anos de apego ao culto exterior.
É um processo de alienação em que os cristãos
se entregaram à matéria, às coisas e aos objetos. Em consequência, o
Cristianismo também se fez objeto, e o que é pior, objeto de especulações em
todos os campos da mundanidade. As formas se esvaziaram. Quando hoje se fala no
Reino de Deus entende-se Reino da Terra. Quando se fala no Cristo, pensa-se num
mito. A fé projetou-se nas coisas, segundo as leis do animismo primitivo dos
selvagens e das crianças. O culto cristão não é de entidades espirituais, mas
de ídolos materiais carregados se supostos poderes transferidos a imagens e
símbolos. Esse processo de transferência anímica esvaziou também os crentes,
transformando a fé antiga em crença supersticiosa na trepidação dos tempos
novos em que a máquina (também coisa, objeto) sobrepõe-se ao homem. A prova
maior desse esvaziamento, em que o pneuma, ou espírito, afastou-se da criatura
está na desumanidade contemporânea, em que se luta pelas coisas aniquilando o
homem. O valor humano desaparece tragado pelo valor excessivo das coisas.
A
revisão do Cristianismo é hoje uma exigência da própria sobrevivência humana.
Embriagado pelas conquistas materiais, o homem se deixa arrastar pelas coisas,
coisificando-se a si mesmo. As ideias materialistas o levam a considerar a
existência terrena como um jogo de forças cegas em que só vale o mais forte. E
como a força também não está mais no homem, transferiu-se para as máquinas e
seus combustíveis, para as armas e seus explosivos, o próprio homem se
transfere, já não apenas animicamente, mas de corpo inteiro, para o mundo das
máquinas. Mecaniza-se.
A
visão cristã do mundo mudou-se em visão diabólica. Transformando Jesus de
Nazaré em mito, o homem se transformou em robô. A ingenuidade da pragmática
norte-americana ainda envia cosmonautas à Lua. Os soviéticos, apegados à práxis
marxista, preferem enviar tratores de controle remoto, que lhe trazem as pedras
lunares com menos complicações e menos perigo. O espírito de aventura dos
norte-americanos não resiste ao desafio do Cosmos. O espírito prático dos
russos, num processo de industrialização mais recente, não resiste ao fascínio
da mecânica. Mas se os americanos continuam apegados às suas seitas cristãs e
os russos ao materialismo marxista, no fundo se encontram e se conjugam na
mesma alienação do homem à máquina.
Tagore assinalou a transformação da antropofagia selvagem à
civilizada, mostrando que os homens atuais se entredevoram na selva
selvaggia dos lucros e dos juros. Crianças esquálidas, nos arredores de
metrópoles suntuosas, tiveram seu sangue sugado pelos vampiros insaciáveis do
lucro. Os campos de trabalhos forçados da URSS são máquinas de vampirização
montadas pelo Estado. O misticismo russo também se transferiu para o fanatismo
político estatal. Na própria índia mística, os gurus montaram suas indústrias de
espiritualidade enlatada. Santiniketan, a Universidade espiritual de Tagore, é
hoje um centro de política universitária voraz, como disse o Dr. Barnejee. A
política espiritual de Gandhi, o Mahatma cedeu lugar à política da violência,
dirigida por uma mulher.
O processo de inversão dos polos projeta-se em todo o mundo. A China
entregou-se ao materialismo e à massificação cultural, eliminando os últimos
resquícios das tradições espirituais. Na África negra tudo foi mais fácil.
Bastou o afastamento dos brancos para que os negros revelassem o que aprenderam
com eles para multiplicar sua autodestruição. E Israel, que rejeitou o Cristo
desde o princípio, conseguiu reorganizar-se na base das tradições da raça, mas
agora em ritmo de 007, violando todos os princípios do
Direito Internacional para mostrar a dureza interior dos sabras, esses
frutos do cactus do deserto, prontos a revelar suas habilidades mecânicas.
A
coincidência de todas essas modificações no mundo é significativa, como se diz
na linguagem parapsicológica. O panorama mundial reflete a inversão de valores
produzida pela deformação milenar do culto cristão. Porque a verdade é que o
Cristianismo envolveu todo o mundo, pelo seu poder de expansão e contaminação,
no fluxo de transformações deflagrado pelas palavras do Cristo. O mundo cristão
desequilibrado, com sua polaridade invertida, desequilibrou todo o planeta. Ou
reequilibramos esse mundo, restabelecendo a verdade cristã, ou pereceremos com
ele.
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